sexta-feira, 25 de outubro de 2013

AMARGOR
Hoje, contarei uma história politicamente incorreta, o que não é do meu feitio, mas contá-la-ei! O José Francisco Rodrigues Rangel deverá lembrar do que lhes falo.
Muitos e muitos anos atrás, em Conde de Porto Alegre, interior de São Borja, pouco antes de chegar na Encruzilhada, ao lado de um grande capão de eucaliptos, num agrupado de ranchinhos, moravam os paraguaios. Agregados, viviam de changas* e de alguma qualquer coisa que ganhassem pelas fazendas ao redor.
O João Grosso e a Chiquinha eram os patrões daquela indiada serena que só mateava e assava, de vez em quando, um chibo* ganhado de alguém. E tomavam canha, isso não podia faltar.
João Grosso, um xirú taludo, feições indiáticas de raízes orientais, sempre de chapéu tapeado, em mangas de camisa e uma bombacha enroscada até o joelho, bem disposto, se precisassem dele. A Chiquinha parecia sua irmã, embora casados. Aliás, todos tinham as mesmas feições, se tentassem aprofundar as árvores genealógicas não teriam terminado até hoje, tamanha a confusão de parentescos entre os bugrinhos.
Meu padrasto, o Cyro, era muito amigo deles e, volta e meia, passávamos na aldeia paraguaia pra prosear e levar algum pedaço de rês pra piazada se lambuzar.
Numa feita, eu estava mateando ao lado do Astério, um bugre velho que mal e mal se fazia entender. Era um emaranhado de guarani, castelhano e português que o resultado final era uma coisa estranha, mas eu entendia. Todos bebiam, incrível, desde a mais tenra idade bebiam. Vi, um dia, um bebê no colo da Francelina, irmã do Astério, estender as mãozinhas, desesperado, quando alguém passou na frente deles com uma garrafa de cachaça, gritando: "Catata, catata, catata!".
Voltando ao mate com o Astério, ali estávamos e ele amanunciando* um cachorro zaino* meio lanudo ao seu lado. Volta e meia meia volta, despacito, o Astério enfiava dois dedos numa caneca de lata e dava pro cachorro lamber. E o cusco muito animado, lambia e ficava no aguardo de mais dedos embebidos não sei em quê. 
Dali a pouco, se veio do rancho um piá agarrado numa chuspa*, e derrubou a caneca do Astério, que bradou: "Mas oigalê piá maleva, derrubou a canha do Amargor, esse ventana!". 
Naquele momento descobri duas coisas: O nome do cachorro e o conteúdo da caneca de lata. 
Mas o paraguaio estava ensinando o cachorro a beber cachaça, senhores ouvintes! E até sairmos, o Amargor estava troteando de lado de tão bêbado, o animalzinho. E parecia se divertir com isso, dava uns ganidos estranhos entre um tombo e outro!
Até onde eu saiba, o Astério e seu cachorro bebum Amargor, morreram de velhos ali mesmo, naquele pontal de eucaliptos do que hoje, só resta a lembrança.
Mas que tal? Bueno, vamos nos aprochegar pro lado da bóia que hoje é cabeça de ovelha ensopada com sucrilhos!
Até diacapouco, indiada feroz mas alegre.
*Changa - Tarefa eventual com alguma recompensa
Chibo - Ovelha
Amanunciando - Domar o animal passando a mão no lombo e conversando
Zaino - Marrom-escuro
Chuspa - Balão feito de bexigo de ovelha, porco ou gado 

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